AS APPS E O MEDO DE SOFRERMOS POR AMOR

27-09-2022

Não há dúvidas: o medo de sofrer por amor tem vindo a estruturar muitos e variados perfis de funcionamento defensivo. Findas contas, não é fácil lidar com o sofrimento (e/ou a fantasia do sofrimento) que esse investimento provoca. Por um lado, conhecer alguém novo é adentrar território desconhecido (seja o nosso próprio território subjetivo, seja o território subjetivo do Outro), e todos/as sentimos medo do que não conhecemos.

Por outro lado, a intimidade amorosa é uma experiência que não admite a falta de sinceridade de nós para connosco próprios/as - isto é, no encontro com o nosso território subjetivo pessoal - e, ato contínuo, de nós para com o Outro. 

Muitas vezes tentamos escapar à nossa própria subjetividade porque nela se ocultam - de forma mais ou menos conscientes - certos conteúdos emocionais (como 'feridas mal-curadas' do passado) que não sabemos ou não conseguimos acolher com compreensão e com autoaceitação; conteúdos que se fazem tão intoleráveis à nossa consciência, pela dor que trazem, que tendemos a inibi-los, seja de forma cônscia e deliberada, seja à força de processos defensivos inconscientes - conteúdos que designamos frequentemente como "o nosso lado vulnerável". Não raro, como se nos faz difícil gerir este lado, a tendência é projetá-lo nos outros - sem ter qualquer fundamentação que o justifique, assumimos então que também eles o irão criticar/invalidar/frustrar. Como isto é oposto ao que desejamos (o que desejamos é ser aceites e benquistos/as), escondemo-lo sob um peso de vergonha, culpa - e medo. 

Ao fazê-lo, claro, acabamos por evitar o encontro com o Outro, sujeitando a relação, e a nossa maturação pessoal, a atos de sabotagem. 

 Mais seguros/as, pelo menos a breve trecho, até nos poderemos sentir - mas a segurança que se consegue através do evitamento é sempre ilusória, e potencialmente tóxica: não há quem viva bem se não se aceitar na totalidade das partes que o/a constituem. Não há quem viva bem se não se aceitar nos conteúdos que o/a vulnerabilizam. 

A fuga a sentimentos negativos como a dor de uma morte, de um abandono, de uma rejeição, de uma violentação, de um desamparo, de uma invalidação, ou de qualquer outra 'frustração afetiva' que nos vulnerabilize, leva-nos a fechar portas à experiência amorosa. Ao banirmos o amor da nossa vida, não é infrequente descairmos para uma percebida 'frieza emocional', ou para atitudes agressivas e impulsivas, para a necessidade de atos compensatórios (que depois se pervertem para problemáticas como a dependência da validação externa, a responsabilização do Outro pela própria felicidade, a desresponsabilização pessoal, e para desafios patológicos como o workaholism, o perfeccionismo, o consumo de substâncias, a 'bulimia sexual', entre muitas outras), para o isolamento, para a solidão, para as fugas fantasiosas (nomeadamente através de uma identidade virtual), e para o défice no desenvolvimento das nossas competências sócioemocionais e afetivas (expresso na dificuldade de procurar, iniciar e manter um diálogo, na crescente estranheza diante do Outro, e na dificuldade em aceitar que o Outro pode ser - e certamente será - diferente da idealização que dele fazemos). Não raro, quando constantes e alienadas de reflexão crítica e cuidado, todas estas experiências levam à desestruturação da unidade psicológica, à debilitação da capacidade de valorização pessoal, e à perda do sentido da vida. Freud resume-o desta forma: "Quem ama, sofre. Quem não ama, adoece".

Há, portanto, quem se leve a adoecer por medo ao sofrimento, encerrando-se assim num terrível conflito perde-perde, em circuito fechado à volta do próprio umbigo. Quanto mais se centra em si, quanto mais cerradas prende as muralhas em torno, quanto mais se esforça para evitar a intrusão de quem o/a faça doer por dentro, mais difícil se lhe faz o processo de 'sair e de ir ao encontro do Outro' - esforço de abdicação que constitui toda a essência do amor. Devemos estar atentos/as porque o medo de sofrer por amor vem camuflado de várias atitudes como as que se encontram na publicação feita no nosso Instagram [@carlos_marinho_cres.sendo].

Daí, claro, a importância do autoconhecimento: conhecendo-nos a nós próprios/as e aos nossos mecanismos de defesa, será mais fácil identificar que comportamentos nocivos colocamos em marcha, e de que forma desativá-los. Impedirmo-nos de ser (vou escrever antes em caps - SER), por medo a sofrermos uma perda, condena-nos, inevitavelmente, a essa mesma perda. Digam-me o que me disserem, ninguém é bom/boa a gerir perdas. E isto sugere a fidelidade a um imperativo de ferro: aceitarmo-nos na nossa mais autêntica totalidade, e zelarmos por ela através de todos os atos (autocuidados) que contribuam para o nosso bem-estar - este exercício de autocuidado é a força motriz por detrás da nossa (sempre tão desejada e tão pouco compreendida) autoestima. 

A experiência em consultório convence-me que um dos mais válidos indicadores da qualidade da saúde mental de uma pessoa está na (maior ou menor) capacidade que tenha de amar o Outro - entenda-se que a forma como cada um/a de nós percebe e responde afetivamente ao Outro é sempre reflexo da forma como nos conseguimos providenciar (ou não) este amor (de compreensão, de acolhimento e de aceitação) a nós próprios/as. 

A partir daqui, o que sói ocorrer no processo terapêutico é orientar os/as meus/minhas clientes para a aceitação e a gestão positiva da sua vulnerabilidade, ajudando-os/as a encarar harmoniosamente (e não mais a evitar) todo e qualquer conteúdo que faça parte da sua totalidade. Ao permitirem-se a exposição gradual e consciente a estes conteúdos (sobretudo conteúdos emocionais), conseguem neutralizar a ascendência que têm sobre o seu psiquismo; não mais ameaçados desde a própria interioridade, os/as clientes tornam-se capazes de descer as muralhas defensivas e prepararem as pontes de amor que os/as levarão ao encontro com o Outro. 

O caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que ele consiste, antes de tudo, em dar, não em receber - dar de nós mesmos/as, do nosso tempo, da nossa compreensão, do nosso conhecimento, dos nossos sentimentos. Dar, temendo desde dentro essa dádiva, paralisará o processo de entrega. É desde dentro que começa o amor que podemos reciprocar: desde a aceitação dos medos e inseguranças que são expressões máximas da nossa humanidade. No ato de dar, algo nasce, e ambas as pessoas envolvidas se tornam gratas pela vida que para ambas nasceu. Ser-se em humildade, verdade, coragem, fé e disciplina, de si para consigo mesmo/a e, por extensão, no encontro com o Outro, é permitir que o amor se sagre como uma força que produz mais e mais e mais amor. Permitirmo-nos vencer o medo e cultivar o amor é conquistar a maior fonte de vitalidade que temos.

Na pós-modernidade não existe já um conceito nem um trajeto unitários de amor. Não há definição que semanticamente lhe concentre todas as nuances. Há uma pluralidade de semânticas e a reboque, toda uma multiplicidade de ideários amorosos. Ainda assim, uma característica que de forma crescentemente prevalente lhe podemos atribuir é a do seu entendimento como algo consumível - da mesma forma precária e volátil que consumimos bens e serviços. Foi esta noção baumaneana que primeiramente me fez voltar a atenção para as apps de namoro e, de forma mais particular, o Tinder e o Grindr (esta última, uma aplicação de rede social e um serviço de namoro online para homens homossexuais, bissexuais, pessoas trans e pertencentes à comunidade queer). 

Bem entendido, percebe-se que a mesma sociedade que cria as apps de namoro, que faz e desfaz matchs no espaço de um mesmo fôlego, é também aquela que procura ainda uma relação significativa, estável e duradoura, e que mantém no imaginário o ideal de casamento. Mais relevante para esta nota é pensar nas apps como vitrines de exposição do nosso 'eu'. Até certo ponto, nós somos as nossas aplicações - Grindr, Scruff, Hornet, Tinder, Wapa, o que for.

Tal como numa casa 'só lá se encontra o que lá se põe', também nas apps vamos encontrar o que lá colocamos dos nossos padrões de funcionamento. Do seu uso e abuso se observarão alguns (certamente que não todos) dos nossos desejos, das nossas necessidades, e das nossas expectativas em relação ao ócio, ao sexo - e ao amor. 

[Alguns artigos e ensaios discutem a nociva combinação de variáveis culturais dos coletivos LGBTQIA+ com o uso de apps que, como o Grindr, favorecem as interações sexuais. De forma geral e simplista, valores inseridos nesse grupo cultural como a hipersexualidade, a superficialidade, a hierarquização, os valores machistas ou a facilidade de exclusão parecem ser aumentados e intensificados. Outras perspetivas versam sobre como o uso destas apps modifica e deteriora certas diretrizes e/ou comportamentos relacionados com o que se denomina a 'cultura do namoro'. Sem dúvida que essas variáveis deverão ser tidas em conta nas reflexões que tecermos sobre o amor. Tema, talvez, para futuras notas - por agora, o desafio que deixo é determo-nos à janela do tanto que pode ser encontrado de nós próprios/as e da nossa relação com o medo de sofrer por amor nestas 'casas-software']. 

Se por momentos as pessoas deixassem o medo de confrontar a sua vulnerabilidade, se por momentos se permitissem retirar as máscaras do evitamento, se um Tinder e um Grindr fossem plataformas que só aceitassem o registo da verdade dos nossos sentimentos e das nossas disposições para amar... que mudanças se operariam na relação connosco próprios/as e com os outros? Que opinam?


Com estima, Carlos Marinho

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